A primeira vez que fiz uma publicação que apelava ao apoio das vítimas e iniciei um projeto de reflorestação em Monchique foi depois do grande incêndio, em 2003. Fui visitar os proprietários da herdade Covão da Águia, com mais de 60 hectares, floresta, casas e ruínas, que havia sido comprada no dia 5 de setembro de 2003 sem que se pudesse saber que o terreno iria arder uma semana depois. Foi um milagre não ter ardido a casa – não se registaram feridos – e, portanto, fui encontrar-me com os novos proprietários – dois monges budistas – no meio da sua floresta completamente ardida para perguntar se poderia ajudar na limpeza do terreno. Simpaticamente, convidaram-me a entrar na casa e ofereceram-me uma chávena de chá. De certa forma éramos vizinhos. Portanto, tirei os sapatos, entrei na sala e sentei-me no sofá que me indicaram. Depois, começámos a falar.
Porque estou a escrever isto? Porque Monchique é um lugar onde se colhe o que se semeou. Naquela altura, ainda não sabia que esses monges geriam a fundação Dalai Lama de Portugal. Fiquei sensibilizado pela sua atitude. Tinham vivido momentos terríveis. Queria mostrar-lhes que não estavam sozinhos, e que o amor pelo próximo existe, na realidade. Constataram-no com indiferença.
Houve uma pergunta que me colocaram duas vezes nesse mesmo dia: por que motivo pretendia iniciar esse projeto? Qual seria o meu proveito pessoal em iniciar um projeto de reflorestação depois dos catastróficos incêndios? Perguntaram diretamente: O que ganhas com isso? Foi a pergunta que me dirigiram os monges e os lenhadores que estavam lá fora. A ambos respondi: porque me dá alegria e porque o sei fazer. Os monges compreenderam-me de imediato. Mas os lenhadores de Monchique ainda acrescentaram: E quem é que te paga? Não compreendi logo a questão e retorqui: O que queres dizer com isso? Especificaram: bem, deves ter algum proveito. Foi nesse momento que compreendi como as coisas funcionam em Monchique. De certa forma estava a retirar-lhes trabalho. Para eles, a entreajuda não existia. O trabalho era para ser pago, e ponto final.
Depois de um incêndio também é antes de um incêndio
André Varela, candidato da CDU, não assume as suas responsabilidades
Depois de um incêndio, a natureza está em estado de choque. As árvores estão quebradas a torto e a direito, como depois de um acidente. Há pássaros e outros animais, como javalis e ovelhas, todos mortos pelo chão. Tudo está carbonizado, e há que abrir caminho para poder chegar ao local. O melhor é contratar um ou vários lenhadores para abrir caminho pela floresta queimada. Eles tratam de cortar tudo com motosserras e retiram o que se pode aproveitar: galhos de sobreiro ou medronheiro, troncos de pinheiro manso e mato de urze e tojo. Depois do meu apelo publicado no jornal apareceram 20 homens e 2 mulheres, tudo pessoas que eu não conhecia, mas que eram leitores do meu jornal. Apresentámo-nos. Todos tinham a sua motosserra e tencionavam juntar lenha para o inverno. No apelo, tinha indicado que iria haver muita madeira para recolher. Todos iriam poder juntar lenha para o inverno, gratuitamente, ajudando a limpar o terreno das árvores ardidas. Depois de algumas horas olhámo-nos e tivemos vontade de rir. Parecíamos limpa chaminés. Mas cada um tinha tratado de uma árvore e juntado a sua lenha. Os que tinham atrelados começaram a carregá-la. Normalmente os silvicultores têm que contratar um, ou vários lenhadores, e pagar pelo trabalho, à hora, para que a lenha seja cortada e entregue ao proprietário da plantação. Neste caso, o trabalho era voluntário, e a recompensa era a lenha que se podia levar para casa. Gratuitamente.
Os monges serviam chá e sorriam muito. Tinham lenha suficiente para si e não se importavam de compensar os trabalhos com a mesma. Eles não tinham que pagar nada e nós recebíamos lenha gratuitamente. Tínhamos combinado reflorestar a área ardida com espécies autóctones no inverno…. Selecionámos as espécies, escolhendo o sobreiro e o pinheiro manso, o cedro e o cipreste. E, por isso, encontrámo-nos muitos sábados para trabalhar no Eden do Dalai Lama de Monchique. Por volta do final do ano começámos a instalar os tubos de rega do tanque até às pequenas árvores.
Tinha começado a segunda fase. Os lenhadores tinham desaparecido discretamente, pois não queriam participar na plantação das jovens árvores. Já só eramos cinco. Foi a minha primeira lição quanto à ajuda comunitária em Monchique. Mesmo assim, houve quem persistisse. Duas senhoras já de idade vieram muitos sábados ajudar a plantar árvores, apreciando também a companhia. Depois de umas horas de trabalho fazíamos uma pausa para tomar um café e um medronho, e elas fumavam um cigarro com boquilha. Passámos a conhecer-nos melhor. Por vezes, os monges traziam bolachas nos intervalos.
A incapacidade para o luto. Foi algo que notei logo à partida. Todos evitavam o tema do luto e do trauma dos incêndios. Mas ele estava presente com todo o seu peso, marcando o caminho, repetindo: se quiserem alcançar a vossa meta, têm que entrar de luto pela perda da natureza. Têm todos que se expressar sobre o que perderam e o que vos falta. A maior parte de nós não conseguia. Continuavam o seu dia a dia como se nada fosse. Depois de algum tempo, quando a confusão na floresta estivesse arrumada, queriam olhar o futuro sem processar o passado. Era doloroso demais, diziam alguns. O luto implicaria uma análise das razões que levaram ao incêndio, o que poderia aumentar a dor ainda mais. Portanto, ficou tudo na mesma até ao incêndio de 2018. Era de esperar, e todos pareciam estar já a contar com ele… uma espécie de saudade. Quem passou por cinco ou seis incêndios tem cicatrizes profundas e protege-se da melhor maneira. Mas a capacidade para o luto é outra coisa.
Resumindo, e observando os danos, contabilizando cada detalhe, concluímos que há algo que não está bem em Monchique. No fundo, todos o sabem, mas não falam nisso. Temos que levantar a voz e pensar nisto em conjunto. A natureza não é algo que se possa expressar em valor monetário. Não há dinheiro que possa substituir a floresta. Todos sabem bem disso. Uma casa pode ser avaliada, mas como atribuir um valor a uma árvore? Inicia-se uma discussão sobre se a árvore ainda pertence ao terreno ou pertence ao terreno vizinho – o melhor é comprá-la, para não ser abatida. Truques sem sentido.
Vamos ser sinceros. Uma árvore tem um enorme valor imaterial. A sua beleza serve o turismo de natureza. Que valor dar à sua sombra? E às raízes, que regulam o lençol freático? O que pagar pelos frutos e por nos proteger do vento? Os seguros nada pagam pelas árvores. O seguro só cobre a casa e o seu recheio, uma mangueira, um chapéu de sol. Mas a natureza é impagável. É por isso que o prejuízo depois de um incêndio florestal é enorme. Os danos são também imateriais. Por exemplo: perdeste 289 sobreiros. A última vez que foram descascados foi há cinco anos – e voltariam a ser descascados daqui a outros cinco. Há cinco anos renderam-te 29.000 euros, e agora não terás rendimentos daqui a cinco anos. Mas o que vale a árvore? Ela precisa de 30 anos para poder dar cortiça pela primeira vez e depois, em Monchique, é descascada de dez em dez anos. E por não ser descascada de nove em nove anos, como em outros casos, a cortiça também tem mais valor.
Há muitos idosos a falecer depois de um incêndio. Reparo bem em todas as doenças que aparecem depois de um episódio desta natureza. O meu vizinho Carlos faleceu com cancro no inverno de 2018. Um dos vizinhos suicidou-se. A floresta morre e o Ser-Humano morre com ela.
As vidas do Ser-Humano e da floresta andam de mãos dadas no seu percurso circular com as estações do ano. Mesmo que neguemos ter alguma ligação emocional para com a floresta, esta, na realidade, toca-nos e marca-nos profundamente. Há uma questão em aberto que temos que abordar. Aproximamo-nos indiretamente, nas pontas dos pés e com cuidado. A pergunta é: Qual é o significado da floresta para nós? Qual é o significado da floresta para o Ser-Humano?
Uma floresta queimada é negra e pensar em todos esses seres falecidos escurece-me a alma. Porque, para mim, uma árvore é um amigo verde que me acompanhou durante muitos anos. Não consegue fugir. Está plantada no seu posto, e o seu valor é inestimável. Por exemplo, o sobreiro de 2.000 anos em Corte Grande que ninguém se lembrou de proteger durante o incêndio… o seu valor é inestimável. E, sendo assim, por que razão deixá-lo sofrer com as leis do mercado, do capitalismo, as leis empresariais e de alta finança, que plantaram uma floresta de eucalipto a 250 metros para vender a tonelada de eucalipto a 16,75 euros? Em comparação, uma arroba (15 kg) de sementes de alfarroba rende 17 euros. Por que razão medimos o peso de uma árvore, transformamo-la em madeira, reavaliamos novamente para que venham com a motosserra, de tempos em tempos, para a abater e vender? Por que a Navigator precisa de fazer papel e o IKEA precisa de mesas e cadeiras? Especulação com árvores para quê? Eucaliptos sim, oliveiras não. Não se consegue suportar essa contradição. Ela tem que ser resolvida. Temos que nos afastar da monocultura que impõe o mercado para chegar à biodiversidade em prol da natureza. Temos que processar o luto pela perda de uma árvore, de uma floresta, para compreender o que temos que fazer. A floresta é proteção ambiental. Não pode ser transformada em dinheiro. Não podemos abater as árvores vivas pois são amigas do Homem. Determinam o clima, transformando o CO2 em oxigénio. Não se planta árvores para as abater alguns anos depois, mesmo quando se trata de uma monocultura que ameaça a natureza. Não se deve plantar na densidade de um eucalipto por metro quadrado. Ele é um perigo para toda a vizinhança. O eucalipto arde de forma perigosa devido aos seus óleos. É uma árvore de crescimento rápido que, após o terceiro ano de vida, retira diariamente 60 litros de água do solo. Porque, entretanto, todos o sabem, empresas como a Navigator procuram outras argumentos. Dizem que o eucalipto é bom para o clima por crescer depressa e absorver muito CO2. Mas não mencionam que num incêndio em que arde uma área de 1 km2 de floresta de eucalipto são libertadas 20.000 toneladas de CO2 na atmosfera.
E esse risco dos incêndios florestais só é aceite – é um risco que é assumidamente aceite – para satisfazer os interesses dos produtores de pasta de papel e porque gera dinheiro sem muito trabalho, apesar de sabermos que é altamente inflamável e mau para o solo da floresta. É este o contrassenso que tem que ser abordado pelos políticos nestas eleições autárquicas. É uma questão sensível. Assumirão uma postura clara ou irão mentir?
A ECO123 convidou o político André Varela (CDU) para dar se manifestar sobre as medidas propostas para travar os incêndios, mas este não compareceu à entrevista. Não aceitou ser entrevistado. Não abraça a possibilidade de responder sinceramente a uma pergunta bem concreta. Aceita apenas responder por escrito. Diz serem temas incómodos. Pelos vistos, receia uma abordagem frontal, em conversa direta. Este político, que pretende vir a ser Presidente da Câmara de Monchique, deixa escapar uma oportunidade histórica para poder alcançar nestas eleições, para o partido que representa, mais do que 4,07%, ou seja, mais do que os 140 votos alcançados em 2017. A ECO123 quer perguntar-lhe qual a sua posição quanto ao tema da floresta em Monchique e como pensa travar os incêndios. A pergunta justifica-se. É uma questão que todos os cidadãos de Monchique querem ver solucionada pelos seus políticos. André Varela, porém, exige que a ECO123 coloque todas as questões primeiro por escrito. É o único candidato que não aceita as questões de forma profissional, faltando à entrevista. Sábado, dia 28, às 9 horas, esperámos no restaurante Rouxinol. Ele, porém, não compareceu diante da imprensa. Às 9h45 voltámos aos nossos escritórios. Em Monchique, todos colhem apenas o que semearam.